Storytelling Business - O Olhar Raro - por Max Franco

Artigo

25 Junho, 2020

André entrou na sala portando o seu melhor sorriso e, como se definiam os novos protocolos, não esticou a mão para receber o cumprimento convencional. Coisa que lhe deixou aliviado porque as mãos estavam geladas de tanto suor.

Já fazia 10 meses que André estava sem emprego ou ocupação. As entrevistas de emprego já eram raras antes da pandemia. Depois, eram quase impossíveis.

- André Costa Ribeiro, não é isso? - perguntou a mulher olhando apenas para a tela do computador à sua frente.

- Exa…exatamente. - disse André, pigarreando.

- 37 anos. Casado. Dois filhos. Ensino médio concluído no EJA. Profissão?

- Já fiz de tudo: porteiro, segurança, servente de pedreiro, jardineiro…

- Já foi preso, André? - perguntou a mulher de bate-e-pronto.

André baixou os olhos e falou para os seus sapatos puídos: Já. Estou sendo julgado, ainda…

- Eu agradeço por ter nos procurado, André - falou a entrevistadora enquanto anotava algo no seu computador. - Nós vamos lhe dar retorno sobre a vaga até sexta-feira. Pode pedir para o próximo da fila entrar, por gentileza?

- Claro. Mas, senhora, eu gostaria de lhe explicar a razão…

- André, não tenho nem tempo nem interesse de saber a circunstâncias do seu delito. Peço apenas que espere o nosso contato. Boa tarde!

O homem se ergueu pesadamente e caminhou até a porta. Não era a primeira vez que situação semelhante lhe ocorria. Ele podia apostar. Ele sabia palavra por palavra qual seria o texto da ligação que receberia até sexta-feira. André fechou os olhos e mordeu o beiço inferior até sentir dor. Quando vai ser a próxima entrevista? Vai ocorrer? O resultado vai ser o mesmo? De novo e de novo?

Quando tocou a maçaneta da porta, as lágrimas já lhe molhavam o rosto e desciam pela camisa. Sua melhor camisa. Lavada com sabonete Rexona e passada meticulosamente por Joana. "Dessa vez, vai dar certo, homem! Tenha fé! Deus guarda coisa boa para nós!"

- Você já teve fome, dona? - sapecou André se virando abruptamente para a recrutadora. - Fome, fome de verdade, já teve? Aquela fome que você fica vendo estrelinhas? Fome de dar fraqueza e desgosto? Já acordou com fome e foi dormir com fome, dona?

- Sr.André, vou lhe pedir…

- Não, não peça nada! Não me peça nada. Você nem me deixou explicar. Você nem me ouviu, dona! Por isso, não me peça nada. Só tente entender, se colocar no meu lugar. Eu passava dias e dias carregando comida nas costas para levar para todo lado da cidade. Dava para sentir o cheiro. Entende? O cheiro gostoso de comida boa. Uma delícia… Quando é para você comer. Quando é para seus filhos comerem. Quando não é. Quando é comida alheia. É uma tortura. São horas de tortura.

A mulher, como tivesse levado um choque, enfim deixou de olhar a tela e, de olhos arregalados, começou a prestar atenção no homem esquálido que lhe falava.

- Eu estou com esse tipo de fome agora, moça. Mas, eu já estou acostumado. Já meus filhos… Um tem oito, entende? O menor tem quatro. A última entrega daquela noite de domingo era uma pizza. Minha mulher me manda uma mensagem. Essa aqui. Eu guardei, veja. "André, nada na geladeira. Pedro e Teteu choram de fome. Traz algo?"

A entrevistadora leu o texto no aparelho celular e olhou para o rosto do homem como se o visse pela primeira vez.

- Eu não devia ter feito o que fiz, dona. Foi errado! Mas, eu não pensei duas vezes. O desespero leva a gente a fazer umas loucuras, sabe? Eu lhe juro: eu não pensei. Só peguei a minha moto e corri para casa. Você devia ver os olhos deles. Todo pai deveria poder ver seus filhos sempre felizes daquele jeito. Nenhum pai deveria ir dormir sabendo que seus filhos choram de fome. Foi o que fiz, dona. Eu fiz errado, mas foi o melhor e o pior erro que já fiz na vida.

- Sr.André, me perdoe… - começou a mulher meio engasgada. - Me desculpe. Eu não sabia.

- Não se desculpe. É que ninguém sabe mesmo. Só eu sei. Só nós sabemos. Só nós sabemos da fome, da humilhação, da esperança atirada no chão todos os dias. Todos os dias!

- Eu não posso prometer nada, Sr.André. Mas lhe prometo nada, mas eu juro…

- Moça, não jure nada. Já me juraram tanto. - disse o homem se encaminhando para a porta da sala. - Só lhe peço uma coisa. Olhe para a gente. A gente é gente, sabe? Na minha vida, nem olhar a gente ganha.