Provocando - Paisagens do mal - por Marcelo Veras

Artigo

03 Março, 2021

"Se virou paisagem, perdeu relevância"  

No dia 03 de abril de 2020, quando a pandemia estava apenas começando aqui no Brasil, morreram 766 pessoas na Itália. Lembro-me como se fosse hoje, da minha cara e da expressão grave da minha esposa, ambos com lágrimas caindo pelo rosto ao ver a notícia na TV. Choramos copiosamente.

- Meu Deus! Que triste! - dissemos um ao outro

No dia 03 de março de 2021, dia em que escrevo este texto, 1.910 brasileiros perderam a vida. Na frente da mesma TV, vi a notícia e não derramei uma lágrima.

A causa da mudança de postura da minha parte entre um fato e o outro não reside em indiferença, maldade ou porque nenhum desses 1.910 são próximos a mim. Ela é explicada por um fenômeno muito simples de entender e contra o qual luto há anos - o efeito paisagem.

No início de 2010, comecei a minha jornada de escritor semanal de crônicas. No meu primeiro texto (artigo 01, no Blog marceloveras.com), cujo título é "Ambição e ganância", tratei do tema. Ao deixar três dicas práticas para não se cruzar a fronteira entre a ambição e a ganância, a terceira fazia um convite para que todos nós, com certa frequência, fizéssemos um censo da nossa vida. Um momento para parar, olhar para o lado e termos consciência do que temos e do que conquistamos, ou do que está muito mal e precisamos mudar. Esta dica tinha um único objetivo - não deixar as coisas virarem paisagens. Ao virar paisagem, algo bom ou ruim, passa a não ter mais valor ou importância. Isso, para mim, é um empurrão para o abismo das decisões erradas. 

O meu grande amigo há 26 anos, Jorge Cunha, um dos maiores historiadores que já conheci, me disse uma vez sobre as mazelas do nazismo e porque os países mantém, até hoje, a história viva e os campos de concentração abertos à visitação. O motivo, segundo ele, é muito simples: "Não podemos nos esquecer, porque se esquecemos, podemos repetir". Em outras palavras, aquela aberração não pode virar paisagem... Se virar, um dia se repetirá.

Pois bem, no meio de discussões e debates horríveis e polarizados, com argumentação pífia e prioridades de agenda equivocadas, muitos olham para o número de mortes diárias no Brasil como se fosse uma paisagem. É como se caíssem 8 aviões Boeing com 250 pessoas a bordo em um dia. Mas é normal. Virou normal... Enquanto a tragédia se amplia, a falência moral completa do nosso sistema político se mostrar cada vez mais clara. Enquanto pessoas morrem (de covid e de fome), vamos votar a imunidade parlamentar. Já na sociedade civil, uma legião de marionetes que também tratam tudo como paisagem.

Hoje, me pego aqui, escrevendo este texto e deixando cair algumas lágrimas, não só pelos 1.910 do dia 03 de março, mas por todos os mais de 250.000, seus amigos e familiares. Estou muito triste por um lado, mas feliz por ter conseguido retomar a minha atenção plena aos fatos à minha volta. Não, isso não pode virar paisagem! Isso não é normal e não pode ser tratado como normal! Embora me sinta impotente e incapaz de fazer algo para mudar o cenário, não posso de forma alguma deixar de me chocar e me incomodar.

E você? Qual foi a última vez que se emocionou quando viu o número de mortos em um dia? Quando foi a última vez que parou e fez um censo e um balanço da sua vida e do que está à sua volta? Será que não tem coisa muito boa na sua vida e que deve valorizar, mas que você não enxerga mais porque deixou virar paisagem? Será que não tem algo muito ruim na sua vida e que deve ser mudado, mas que você deixou virar paisagem e se acostumou? Cuidado! Este tipo de paisagem não merece ser apreciado.

Provocação feita. Até o próximo!