Ponto de Contato - Social Credit Score ou Sistema de Crédito Social - por Eliane El Badouy Cecchettini

Artigo

18 Janeiro, 2018

Estamos a poucos anos da entrada da terceira década do século XXI e nunca um livro foi tão atual quanto "1984"de George Orwell. Mas além da realidade "fictícia" relatada no livro temos, também, a série "Black Mirror" da Netflix, onde as situações ali apresentadas pareceriam delírios de ficção cientifica se já não estivessem batendo à nossa porta.

Agora imaginem a combinação explosiva onde o Big Data atende ao Big Brother para avaliar cidadãos, e cada aspecto de suas vidas passa a ser dominado por classificações. E mais, essa classificação seria exposta publicamente em relação à de toda a população e usada para determinar sua qualificação para adquirir ou se candidatar a qualquer coisa.

Pois bem, a realidade parece tão sombria quanto a ficção. Convido vocês à reflexão com base no texto abaixo, traduzido e adaptado do original em inglês, China?s "Social Credit System" Will Rate How Valuable You Are as a Human by Dom Galeon and Brad Bergan on December 2, 2017,  do site Futurism.

 

Em um mundo essencialmente controverso, a China planeja implementar um sistema de crédito social (oficialmente conhecido como Social Credit Score ou SCS) até 2020. A ideia apareceu pela primeira vez em um documento do Conselho de Estado da China publicado em junho de 2014.

É um avanço tecnológico tão chocante para os paradigmas de mentalidade moderna que muitos podem tratar como brincadeira, mas acomodar-se em uma contrariedade derrotista, pois a ficção científica nos mostra seu lado mais sombrio.

 

O SCS parece relativamente simples. Todo cidadão da China, que hoje já passam de mais de 1,3 bilhão, receberá uma pontuação que, como uma questão de registro público, está disponível para todos verem. Esta nota do cidadão vem de monitorar o comportamento social de um indivíduo - a partir de seus hábitos de gastos, a regularidade de pagar contas, suas interações sociais - e será a base da confiabilidade dessa pessoa, que também será classificada publicamente.

 

Isso realmente parece pior do que um pesadelo "Orwelliano".

 

A nota de um cidadão afeta sua elegibilidade para uma série de serviços, incluindo os tipos de empregos ou financiamentos que podem obter, e também afeta para quais escolas seus filhos se qualificam. A este respeito, o SCS se assemelha a um dos episódios mais arrepiantes da terceira temporada do Black Mirror, do Netflix. Aliás, essa não é realmente conhecida como uma série para "se sentir bem". Ele apresenta vários pontos de vista distópicos da sociedade, mas a SCS da China prova que a realidade pode ser ainda mais sombria do que a ficção.

 

Este "serviço" não está programado para rodar integralmente até 2020, mas a China já iniciou uma implementação voluntária do SCS, em parceria com várias empresas privadas, a fim de obter os detalhes algorítmicos necessários em larga escala, num sistema baseado em Big Data.

 

As empresas que trabalham nisso incluem a China Rapid Finance, que é parceira do gigante da rede social Tencent e da Sesame Credit, subsidiária da Alibaba empresa afiliada Ant Financial Services Group (AFSG). Tanto a Rapid Finance quanto o Sesame Credit têm acesso a quantidades intimidantes de dados, o primeiro através de seu aplicativo de mensagens WeChat (atualmente com 850 milhões de usuários ativos) e o último através do seu serviço de pagamento AliPay.

 

De acordo com a mídia local, o SCS da Tencent vem com seu aplicativo de bate-papo QQ, onde a pontuação de um indivíduo atinge um intervalo entre 300 e 850 e é dividida em cinco subcategorias: conexões sociais, comportamento de consumo, segurança, riqueza e observância às regras.

 

A principal questão é que o SCS, em essência, coloca um número em um cidadão classificando seu valor como um ser humano - e força outros a respeitar essa classificação.

 

Mais do que trabalhar como facilitador social, tal sistema poderia acabar se tornando altamente restritivo. Falando para WIRED, o diretor de tecnologia do Sesame Credit, Li Yingyun, admitiu, dizendo que, no âmbito de um sistema SCS, uma pessoa poderia ser julgada por suas compras. "Alguém que joga videogames durante dez horas por dia, por exemplo, seria considerado uma pessoa ociosa, mesmo que seja um engenheiro testando fazendo seu trabalho", disse Li. "Alguém que compra frequentemente fraldas seria provavelmente considerado como um pai, que em geral é mais propenso a ter senso de responsabilidade".

 

Como você define os comportamentos das pessoas no dia-a-dia? As pessoas fazem tantas coisas diferentes por tantos motivos distintos, e se o contexto não é levado em conta pode ser mal interpretado. As palavras soam verdadeiras. Não é preciso pensar muito para descobrir por que pode ser problemático dizer que as pessoas que têm filhos são, em essência, pessoas em quem você deve confiar. O que isso significa para aqueles que não puderam filhos? O que significa para casais do mesmo sexo? O que isso significa para pessoas que simplesmente não desejam ter filhos?


Provavelmente nada de bom.


No final, mesmo um sistema SCS básico que apenas avalia alguns pontos de dados pode pintar uma imagem muito imprecisa e incompleta de uma pessoa. O problema é que o "comportamento socialmente aceitável" será definido pelo governo chinês, não como um processo democrático ou por um painel objetivo. E medidas punitivas certamente serão tomadas quando uma pessoa quebrar essa "confiança".

 

Com o SCS, o governo chinês realmente atingirá dois pássaros com uma pedra: eles terão uma maneira de promover e fazer cumprir o que eles consideram "comportamento socialmente aceitável", e eles terão uma maneira de monitorar praticamente todos os aspectos das vidas dos cidadãos.

 

A sua singularidade reside na existência do desvio diante da norma. Para "normalizar" o sujeito moderno, vão sendo desenvolvidos mecanismos e dispositivos de vigilância, capazes de interiorizar a culpa e causar nos indivíduos remorsos pelos seus atos. Este sistema representa algo mais insidioso do que o Panóptico que Michel Foucault nos advertiu.

 

Caso gostem do assunto seguem outras fontes interessantes:

What's your citizen 'trust score'? China moves to rate its 1.3 billion citizens by Amulya Shankar on November 09, 2017 - PRI's The World

Big data meets Big Brother as China moves to rate its citizens By Rachel Botsman on October 21, 2017, Wired

Inside China's vast new experiment in social ranking by Mara Hvistendahl on December 14, 2017, Wired

 

Eliane El Badouy Cecchettini, Badu como é conhecida no mercado, é publicitária, professora, palestrante e conferencista. Seus 30 anos de carreira foram construídos em grandes grupos de comunicação como Editora Abril, Folha de S.Paulo e Sony Enterteniment Television e agências de propaganda de grande e médio portes. Em sua trajetória profissional atendeu contas como Mc Donald?s, Tetra Pak, 3M, FIAT, CPFL, Souza Cruz, Unilever, Johnson & Johnson, Internacional Paper entre outras. É consultora e pesquisadora do comportamento, comunicação, mecanismos de atenção e do consumo de mídia do jovem contemporâneo.