Ponto de Contato - A dicotomia das Redes - por Eliane El Badouy

Artigo

28 Setembro, 2020


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Cena de: O Dilema das Redes / FOTO: Reprodução Internet


Confesso que fiquei em dúvida sobre o que escreveria em minha coluna neste mês.

Minha hesitação decorre do fato de que em setembro a televisão - essa velha companheira de infância, que acompanhou muitos de nós a crescer - fez 70 anos de Brasil. Como mídia, não poderia deixar passar em branco a trajetória e evolução do meio que passou por grandes mudanças impulsionadas por importantes transformações tecnológicas e culturais. Entretanto, falarei sobre o aniversário da TV em outro momento. 


Como você provavelmente já deve ter ouvido falar, a Netflix lançou recentemente um documentário com o nome de The Social Dilemma (O Dilema das Redes), que aborda um dos avanços mais significativos de toda a história da humanidade - o advento da mídia social. E desde que estreou no início de setembro de 2020, o documentário permaneceu na lista dos "Top 10" da Netflix.


O documentário traz informações que muitos de nós já temos ciência, mas que, ditas pelos designers e criadores das plataformas e em um conjunto organizado de forma documental muito acrescenta e nos chama à reflexão.


É um híbrido jornalismo-drama, que apresenta as várias maneiras como as mídias sociais podem manipular a psicologia humana e o que isso significa para a sociedade em geral; do consumo à preservação da democracia. Por meio de uma série de entrevistas com engenheiros do Vale do Silício que projetaram as tecnologias que agora temem, junto a discussões com vários especialistas em tecnologia e psicologia, combinado a um enredo de ficção, o documentário oferece uma visão reveladora de um mundo que poucos realmente entendem.


Muitos perguntaram minha opinião sobre o filme então, vamos aos pontos:


  • Há pelo menos 10 anos vivemos a Economia da Atenção, baseada em fazer com que passemos o maior tempo possível em um ambiente digital, interagindo com o conteúdo ali apresentado. A partir desse "sistema econômico" desenvolvemos alguns transtornos de atenção como FoMO (Fear of Missing Out) - apreensão constante de que os outros estão vivendo experiências recompensadoras das quais o indivíduo não está participando -  e FoMSI (Fear of Missing Something Important) - medo de perder alguma coisa importante - algo que nos motiva a checar as notificações do smartphone cerca de 150 vezes ao dia, na expectativa de que algo relevante, pessoal ou profissional, tenha chegado até nós.

Partindo destes transtornos podemos notar, ainda, a utilização de duas estratégias importantes que retroalimentam todo esse sistema.

  • O primeiro deles é a fadiga informacional ou info-toxicação, onde muitos estímulos chegando ao mesmo tempo, acabam sobrecarregando a mente do usuário, que, por sua vez, aumenta ainda mais nosso senso de urgência relacionado às notificações que estão chegando.

  • E o segundo trata da utilização de reciprocidade social.  Se você me segue, eu te sigo de volta; se me dá um like retribuo com outro like. Isso ocorre porque temos a necessidade de responder a gestos positivos feitos por outras pessoas, principio básico de convivência social. 

Essas plataformas proporcionam um ambiente de "vida praticamente perfeita", que exige admiração de contatos e amigos e, por conseguinte, demanda reciprocidade social. Dessa forma, dentro do nosso cérebro, o núcleo accumbens é ativado sempre que recebemos um like, reproduzindo em nós essas sensações de bem-estar.


Já foi demostrado em uma pesquisa realizada pela Frontiers in Human Neuroscience (estudo e compreensão do cérebro) que a sensação de ganhar um like no Facebook se compara a quando comemos algo que gostamos, praticamos sexo ou ganhamos dinheiro. O que diferencia a curtida das demais sensações é o elemento surpresa do acontecimento repentino.


Somos seres sociais. Nosso cérebro é social. Muitos estudos surgiram nos últimos anos sobre a importância das interações sociais humanas para o nosso bem-estar.


Sabemos que as recompensas sociais ativam os circuitos de recompensa do cérebro mais do que as recompensas não sociais, e que ameaças sociais, como se sentir solitário ou condenado ao ostracismo, ativam o centro de ameaças mais do que as ameaças não sociais. Outros estudos, ainda, demonstram que a dor social, como ser deixado de fora de uma atividade, ativa as mesmas regiões da dor física. Esses tipos de descobertas explicam o sucesso das mídias sociais. Essas plataformas nos dão algo que excita profundamente o cérebro de uma forma altamente consistente, o que nos faz voltar. 


A mídia social pode ser tão gratificante que supera nossa capacidade de nos concentrar em outras coisas. Nosso cérebro tem circuitos terrivelmente fracos para inibir impulsos, especialmente impulsos que parecem deliciosos. Como nossa capacidade limitada de fazer cálculos complexos em nossas cabeças, o controle de impulsos é um recurso limitado que se cansa a cada uso.Durante décadas, a indústria de alimentos usou esse controle de impulso pobre contra nós, a ponto de agora haver literalmente mais pessoas acima do peso do que famintas no mundo, em grande parte devido às calorias vazias que estão prontamente disponíveis. Nossas mentes podem estar seguindo o caminho de nossas cinturas, como resultado de "calorias neurais vazias": alimento para o cérebro que estimula, mas não preenche.


Em nosso cérebro existe um circuito para "buscar" e um circuito para "gostar". 

A resposta de simpatia acalma a empolgação do circuito de busca. Sem a resposta de liking, somos como o rato de laboratório pressionando uma alavanca repetidamente para obter uma pequena dose de dopamina, esquecendo tudo sobre comida e descanso. O circuito ativado quando você se conecta online é o circuito de busca de dopamina. 

No entanto, quando nos conectamos com pessoas online, não obtemos a recompensa calmante da oxitocina ou serotonina que acontece quando nos ligamos a alguém presencialmente, quando nossos circuitos ressoam com emoções e experiências compartilhadas em tempo real. Uma superabundância de dopamina - embora seja uma sensação ótima, assim como o açúcar - cria uma hiperatividade mental que reduz a capacidade de um foco mais profundo. 


Esse comportamento fortalece o negócio das mídias sociais, que surgiram com o objetivo de ganhar nossa atenção, e de monetizar essa atenção com publicidade, oferta de serviços e outras coisas mais. Como diz uma das frases citadas no filme, "se você não paga pelo produto, o produto é você".


Olhando por esse ângulo fica fácil culpar a tecnologia por nossa dependência. Ou devo dizer acomodação, conformismo e dificuldade de lidar com o tédio. Terceirizamos nossa memória e nosso senso crítico para o Google. Nosso senso de direção para o Waze e caminhamos para terceirizar nossa capacidade de escolha e tomada de decisão para nossos assistentes virtuais, como Alexa.


O documentário não é pessimista. É apenas realista e deixa claro que existe a possibilidade de correção de rotas.


Diante de tanta "felicidade artificial" em nossos dias, e tantos condicionamentos contemporâneos, cabe perguntar: seria útil reler Admirável Mundo Novo? Oito décadas depois, o romance de Huxley ganha atualidade, ao alertar que sociedades de controle podem apoiar-se na tecnologia, numa época tão distante que a Internet não existia e sequer a TV havia sido inventada. O livro apresenta um mundo onde o controle social não dá espaços ao acaso, onde, formadas a partir do mesmo molde, as pessoas são "réplicas", produzidas em série.


Na visão de Huxley, nenhum Big Brother é necessário "para privar as pessoas de sua autonomia, maturidade e história. A seu ver, as pessoas passarão a amar sua opressão, a adorar as tecnologias que desfazem sua capacidade de pensar".


Mas, ao contrário dos cidadãos do Admirável Mundo Novo, somos infelizes. Conforme nosso tempo online aumentou, aumentaram também as taxas de ansiedade, depressão e suicídio, especialmente entre os jovens.


As plataformas de mídia social são alimentadas por um modelo de negócios baseado em vigilância projetado para minerar, manipular e extrair nossas experiências humanas a qualquer custo, causando um colapso de nosso ecossistema de informações e senso compartilhado da verdade em todo o mundo. Favorecendo o isolamento em bolhas de vieses de confirmação que fomentam a proliferação de desinformação, teorias conspiratórias e notícias falsas e insidiosas.


Esse modelo de negócio extrativo compromete o pensamento crítico e prejudica o discurso público produtivo. Algoritmos sofisticados aprendem nossas vulnerabilidades emocionais e as exploram, bem como exploram a atração do cérebro humano pela divisão. Os recursos de direcionamento dessas plataformas fornecem a qualquer pessoa com um motivo, o poder e a precisão para nos influenciar quer seja de maneira econômica, política ou ideológica e com uma facilidade fenomenal. 


Como bem colocado por Fabro Steibel, em sua coluna no MIT Sloan Management Review, não podemos apenas culpar as mídias sociais por promover vícios e distúrbios, e simplesmente ignorar as soluções que trouxeram:  


"o Youtube por exemplo, justamente por ser uma rede social, permitiu surgir uma diversidade de produtores de conteúdo que têm variedade de raça, gênero, sexualidade, religião, regionalidade e tantos outros fatores que mostrou a obsolescência de anos de briga por diversidade na TV aberta ou PayTV. O Whatsapp reduziu o custo de ligação entre famílias, em um país de migrantes e desigual como o nosso, e, por causa dele, hoje as famílias estão mais próximas do que nunca. O Instagram fomentou pequenos e médios empresários a pensar em economias circulares e estimulou mercados sustentáveis, e o Facebook produziu formas de jornalismo comunitário tão fortes, que temos milhares de páginas produzidas e consumidas na favela, com conteúdo noticioso local, algo antes inexistente". Todos esses são fatores positivos das mídias sociais que devemos reconhecer e celebrar. E eles convivem com os pontos de atenção identificados em "O Dilema das Redes".

Não podemos nos acomodar e esperar que as pessoas que criaram "o dito problema" sejam as únicas a resolvê-lo. Cabe a nós, também, a responsabilidade e o compromisso de buscar a educação digital em todos os níveis.


Cabe a nós desenvolver o pensamento crítico que envolve entender a conexão lógica entre ideias, a capacidade de refletir e racionalizar de forma independente. Cabe a nós nos tornarmos aprendizes ativos e não destinatários passivos de informações.


Pensadores críticos questionam rigorosamente ideias e suposições, em vez de aceitá-las porque "todo mundo aceita". O pensador crítico questiona todo tipo de processo ou ideias, goste ele ou não. Não é questionar por pura rebeldia, não é questionar para causar caos ou confusão, é um interesse genuíno em entender o que está por trás de cada coisa, como elas funcionam e quais são seus objetivos. 


Para fechar meu raciocínio deixo para reflexão a frase atemporal de Marshall McLuan

 "Os homens criam as ferramentas e as ferramentas recriam os homens".


* Com informações via: The New York Times, The Guardian, MIT Sloam, Cinema Blend, BBC Future, ProXXima.


Eliane El Badouy Cecchettini, Badu como é conhecida no mercado, é publicitária, professora e coordenadora da Pós-Graduação de Economia Criativa e professora na Pós-Graduação de Neuromarketing da Inova Business School. Seus mais de 30 anos de carreira foram construídos em grandes grupos de comunicação como Editora Abril, Folha de S.Paulo e Sony Enterteniment Television e agências de propaganda. Em sua trajetória profissional atendeu contas como Mc Donald’s, Tetra Pak, 3M, FIAT, CPFL, Souza Cruz, Unilever, Johnson & Johnson, Internacional Paper entre outras. É Conselheira Trends & Innovation, Consultora Sênior de Futuro, Tendências & Consumer Insights da Inova Consulting e pesquisadora do comportamento, mecanismos de atenção e do consumo de mídia contemporâneos.