Negócio sem sal enferruja - Retomada A dez, A Cem ou A Mil - por Raphael Müller

Artigo

10 Janeiro, 2021

Na primeira semana de janeiro, minha família e eu, decidimos passar alguns poucos dias em um resort afastado. O objetivo era recuperar um pouco as baterias, exigidas à exaustão neste interminável 2020, e ganhar fôlego para o início deste novo ano, naturalmente depois de checados todos os protocolos de segurança do hotel.

Máscara, álcool em gel, distanciamento dos outros hóspedes...assim caminhava a nossa semana de descanso. Conforme os dias iam passando, ficava notória a dificuldade do hotel em oferecer um serviço nos padrões estabelecidos por eles e, por consequência, esperados pelos hóspedes. Tornavam-se comuns os erros e demora nos pedidos, bateção de cabeça com relação ao cardápio e desconhecimento sobre o funcionamento das atividades.

Até que no almoço do terceiro dia, o hotel resolveu incluir no cardápio um bife de acém. Eu não sou daqueles que classifica os cortes bovinos como carne de primeira ou de segunda. Acredito que cada parte do animal tem o seu valor e pode ficar delicioso em um preparo adequado. Dito isso, convenhamos que escolher o acém, um corte bovino relativamente barato e mais duro, vindo do ombro e das costas do boi, para prepará-lo como bife, em um resort cinco estrelas, é no mínimo uma opção curiosa.

Comecei a reparar e vi muita gente desconfortável. Decidimos então pedir a um garçom que nos chamasse o gerente. Enquanto o gerente nos explicava o inexplicável, de maneira bastante gentil e cortês, notei que possivelmente não era uma raridade para o gestor do hotel ser convocado por hóspedes para que explicasse algum problema durante aqueles dias. Em sua defesa, pontuava que a pandemia havia reduzido fortemente o número de funcionários, alguns pela necessidade de cortes no quadro de pessoal e outros acometidos pela covid-19 e que, portanto, estavam afastados para recuperação.

Estava claro que os problemas no serviço tinham origem no cenário pandêmico, o que aliás era bastante compreensível, no entanto, quanto mais ele protocolarmente justificava a escolha do menu em razão das baixas na equipe, mas ficava incompreensível a relação entre o argumento e o bife de acém esperando para ser devorado. Ora...aquele bife de acém não chegou ali por conta do coronavírus. Aquilo fez parte de uma decisão prá lá de questionável, muito possivelmente de caráter econômico.

O setor de serviços é considerado por muitos como o motor do PIB brasileiro e é um dos que mais sofreram com a evolução da pandemia. Mesmo com uma tímida curva de recuperação nos últimos 5 meses, o segmento ainda está longe de experimentar uma retomada de sua plena operação. Ao longo da crise foram muitas as perdas. O distanciamento social, fundamental para prevenir o contágio, é uma das razões da difícil retomada, mas outros fatores como o fato de no Brasil o setor de serviços ser muito concentrado em micro e pequenas empresas, sem fôlego financeiro para enfrentar uma crise desta magnitude, e a inflação de preços de alimentos e bebidas, aumentando o custo, e por conseguinte diminuindo a margem, ajudam a entender o difícil cenário enfrentado por estes estabelecimentos.

Muito provavelmente a recuperação de hotéis, restaurantes e afins não se dará na famosa curva em V, tão propalada pelo governo, e talvez nem na forma de um Swoosh, o famoso logotipo da Nike. Mas o fato é que, independentemente de uma retomada a dez km/h, a cem km/h ou a mil km/h, não se pode correr o risco de tomar a decisão estratégica de cortar atributos fundamentais para o posicionamento de uma oferta de valor, sob pena de perder identidade e percepção de qualidade.

O desafio está dado. Se por um lado as empresas vêm acumulando perdas ao longo dos meses e não conseguem repassar essas perdas para o preço, precisam cortar custos. No entanto, o corte de custos não pode causar uma ruptura substancial na qualidade do serviço e nem manchar a imagem e a entrega esperada pelos clientes.

Em momentos de crise aguda, que criam impasses como esses, é que se destaca o papel do líder. É nessa hora que um líder inspirador precisa emergir. Seu papel é puxar o time. Engajá-lo e colocar em prática o propósito da empresa: da orientação estratégica à execução de pequenas atividades, sendo ao mesmo tempo embaixador e guardião da razão de existir da companhia. Caso a corporação não possua um propósito estabelecido, não existe momento melhor para defini-lo. Para que seja realmente absorvido pela equipe, clientes e fornecedores, um propósito precisa ser transformador, ter a capacidade de inspirar a conquista de novos desafios e a construção de um mundo melhor. Precisa também ser massivo, no sentido de ser grande, poderoso e envolver todos os que tenham contato com a empresa.

Quer um exemplo? O slogan "Te dá Asas" não é meramente um componente da estratégia de marketing da Red Bull. É também um poderoso propósito da companhia, capaz de transformar e engajar todos que entram em contato com a marca. É tão forte que transcendeu a atividade principal da empresa de produção de bebidas energéticas, extrapolando para uma série de aquisições de equipes esportivas de diversas modalidades, veículos de mídia, centros culturais, academias de música, entre outras frentes. Portanto, mesmo que você não seja fã de bebidas com substâncias estimulantes, a Red Bull pode "fazer você voar" de várias outras maneiras.

Agora, imagine se o engenheiro-chefe da escuderia RBR (Red Bull Racing) da Fórmula 1 precisasse cortar custos e tomasse a decisão de trocar os motores Honda por um motor desenvolvido pela hipotética oficina "Salve-se quem puder". Fica claro, ao menos para mim, como uma decisão, aparentemente desconexa da visão estratégica, de escolher servir bife de acém no almoço de um grande resort pode colocar a perder toda a construção do propósito de uma companhia, concorda comigo?

Enxergando uma luz no fim do túnel, com o início da vacinação no Brasil, minha mensagem é para os líderes. Assumam seu verdadeiro papel de inspirar as pessoas, dando sentido as suas atividades profissionais e construindo uma organização com um propósito capaz de enfrentar todas as turbulências que venham pela frente. Não será fácil, mas a organização e os profissionais que dela fazem parte dependem de você para seguir em frente. É tempo de ser criativo e utilizar os parcos recursos da maneira certa. Agora é a hora do famoso "só tens um limão...faça uma limonada". Se a retomada virá a dez, a cem ou a mil não sabemos ainda, mas a escolha de como utilizar o acém nosso de cada dia será sempre uma decisão da liderança.

Até o mês que vem com a nossa próxima pitada de sal!

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O blog "Negócio sem Sal Enferruja" da Inova Business School tem o objetivo de debater assuntos ligados à estratégia corporativa. Caso queira fazer comentários, críticas ou sugestões entre em contato comigo por meio do e-mail [email protected]