Negócio sem sal enferruja - Queimem todos os navios por Raphael Müller

Artigo

10 Outubro, 2020

Que a China é uma potência gigante e com um poder de influência cada vez mais decisivo na geopolítica global, ninguém questiona. No entanto, poucos sabem que a hegemonia chinesa poderia ter começado séculos atrás.

Ainda na segunda década do século XV, o terceiro imperador da Dinastia Ming, Yung-Lo, implantou uma gestão de caráter expansionista, sustentada por uma visão estratégica desenvolvimentista de aumento do território e poderio chinês para além das fronteiras até então estabelecidas. Com cerca de 6 expedições marítimas, mais de 300 navios e de 30 mil homens, a esquadra chinesa causaria inveja à corte portuguesa, primeira nação europeia a lançar-se ao mar. Acontece que no momento de planejamento e últimas definições para o envio da 7ª expedição, Yung-Lo morreu, dando lugar ao seu filho, que viria a ser o quarto líder da Dinastia mais emblemática da história chinesa.

O novo imperador, influenciado por correntes de oposição a seu pai, que defendiam a implementação de uma política econômica mais rigorosa no controle de gastos, cancelou a expedição e mais tarde queimou toda a esquadra chinesa, ditando o fim do projeto de expansão e provocando um total isolamento internacional do império.

Estudiosos e especialistas dizem que é muito possível que a manutenção da estratégia expansionista, gerasse os recursos suficientes para cobrir os investimentos e dívidas orçamentárias, colocando a China no mapa das superpotências políticas, econômicas e culturais ainda nos séculos XV e XVI.

O fato é que a partir dos anos 1980 a China implementa uma série de reformas, atreladas a fatores da macroeconomia global, que desembocam em anos sucessivos de crescimento de dois dígitos do PIB, controle inflacionário e uma acelerada redução da pobreza, iniciando a trajetória de expansão econômica que conhecemos hoje.

Diferentemente do que aconteceu com a alternância de poder da Dinastia Ming, no século XV, atualmente nenhum político, burocrata ou empresário chinês seria capaz de defender um novo isolamento, fechando suas fronteiras e esvaziando sua política econômica internacional. Pelo contrário, quem deseja queimar os navios chineses de nossa época são seus adversários, tendo como líder os Estados Unidos de Donald Trump.

A guerra comercial, utilizada como uma estratégia para a reafirmação da plataforma do governo Trump de reconstrução de uma nova hegemonia americana absoluta, começou a se tornar realidade em 2018 com a implantação de uma série de tarifas comerciais para produtos chineses importados. A partir daí vieram retaliações, ensaios de aproximação e acordo, novas acusações de manipulação comercial e mais ameaças, colocando todos os holofotes nas próximas jogadas da atual bipolarização mundial, a chamada Guerra Fria 2.0. Esta Guerra Fria contemporânea em nada lembra a sua homônima do século XX. Se aquela tinha como pano de fundo a questão ideológica, sustentada pelo poderio bélico e pela corrida espacial, esta vem na esteira da 4ª Revolução Industrial e suas batalhas estão relacionadas à administração e poderio de dados coletados, evolução da internet 5G, domínio da computação em nuvem, internet das coisas, além dos avanços da nanotecnologia e da biotecnologia.

E ao que tudo indica o navio a ser queimado neste momento é o aplicativo de compartilhamento de vídeos TikTok. Depois da ordem de retirada do país, passando pela sugestão de aquisição da plataforma por uma empresa americana, até uma amenizada no discurso com o objetivo de não colocar em risco os possíveis votos dos jovens na etapa final da disputa pela reeleição, Trump busca politizar e apresentar-se como o único capaz de defender interesses comerciais e hegemônicos dos EUA. Na realidade, a tentativa de vestir a fantasia de lobo mal no TikTok apenas por ser uma empresa de origem chinesa, pode convencer alguns incautos com tendências protecionistas ou xenófobas, mas não tem nenhum fundamento.

A acusação mais grave atribuída à plataforma, pelo presidente americano, seria a de que o TikTok coletaria uma série de dados e informações pessoais de seus usuários e os compartilharia com o governo chinês. Partindo deste pressuposto, ganharia força a tese de que o governo chinês poderia manipular os dados de 100 milhões de americanos, que é o número de usuários da plataforma naquele país.

Acontece que o TikTok foi concebido utilizando a estratégia de Gestão de Plataformas. Estudada e documentada em livro por professores e consultores do MIT, o modelo de negócio de plataforma é responsável pelo crescimento exponencial das empresas mais revolucionárias de nossa época. Google, Amazon, Facebook, Uber, Airbnb, Alibaba, Youtube, entre outras são adeptas do modelo. Todas assim como o TikTok utilizam a tecnologia para conectar pessoas e instituições em um mercado de dois lados, onde encontram-se de um lado produtores de bens ou serviços - livros, vídeos, posts, caronas, quartos, etc - e de outro, consumidores dispostos a pagar por estes bens ou serviços, gerando a possibilidade de trocas de valor nestas plataformas. Para isso fazem uso de algoritmos específicos, entre outros artifícios, que permitem a criação de efeitos de rede positivos, objetivando ampliar o acesso e interesse de uso da plataforma por seus usuários.

Portanto, o problema não é o TikTok. O problema não são as redes sociais e seus algoritmos, ou a estratégia de Gestão de Plataformas. Existe um importante debate sobre questões próprias das plataformas que deve ser levado adiante e reúne temas como privacidade, segurança de dados, acesso, controle nacionalizado de informações, entre outros. Esse debate deve ser feito não com a régua regulatória do século XX, mas com a criação de diretrizes que encontrem eco nas próprias importantes transformações que estas empresas vêm liderando.     

O resto é só o desejo de queimar os navios mais prósperos e adaptados ao novo mundo.

Até o mês que vem com a nossa próxima pitada de sal!

      

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