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Inteligência Artificial para Negócios - Tecnologia, Pandemia e Renda Mínima por Fabiano Castello

Artigo

12 Dezembro, 2020

Já algum tempo venho pensando em como encerrar os artigos deste ano atípico que não deixará saudade. Precisava ser algo relacionado a como estamos sobrevivendo à pandemia e, claro, relacionar isso com tecnologia, que é sempre o foco desta coluna. Lendo, no dia 5 de dezembro, o artigo que reproduzo a seguir, fiz algumas relações com o que tenho falado em aulas e palestras, quando questionado sobre "se as máquinas vão tirar nossos empregos". Depois de algumas reflexões, resolvi escrever dois artigos, este primeiro falando sobre renda mínima, que é inevitável, e outro, onde vou explorar como podemos "nos prevenir" de perdermos nossos empregos.

O texto abaixo está reproduzido integralmente, sem autorização, mas com os devidos créditos. Quem o assina é o (grande) jornalista e escritor Pedro Dória, que eu sou fã desde há muito tempo, quando ele assinava uma coluna chamada "Navegar Impreciso", no caderno Link do Estadão. Pedro hoje é um dos editores do Canal Meio, um serviço de notícias diário, que chega por e-mail, que é consistente, conciso, imparcial e muito bem feito. Como assinante premium, um baixo valor que pago anualmente para receber informação de qualidade, recebo todos os sábados um texto com reflexões mais profundas. A do sábado 5 de dezembro foi sobre renda mínima, que é a base para, no meu próximo artigo, falar sobre como a tecnologia está trazendo produtividade num ritmo que não mais permite absorver os excedentes de mão de obra e, portanto, a renda mínima será algo inevitável para evitar um colapso social. Por que fazer uma extensa pesquisa se um texto de qualidade está disponível? 

Desejo a todos um Feliz Natal e um próspero 2021, com vacina e muitas realizações. 

E agora, com vocês, Pedro Doria.

"Na virada dos anos 1920 para 30, a Grande Depressão era causa de grande angústia para uma trupe de intelectuais e artistas britânicos que, informalmente, se tornou conhecida como grupo de Bloomsbury por conta da vizinhança londrina em que todos moravam. De mais próximos a mais distantes, faziam parte do conjunto a escritora Virginia Woolf, o filósofo Bertrand Russel, o economista John Maynard Keynes. Educados nas melhores universidades do país, muitos criados na aristocracia, todos brilhantes, cultivavam uma excentricidade comum e criam que havia um prazer profundo e fundamental a se aproveitar no convívio com as artes. Eram pacifistas, experimentavam sexualmente, todos feministas, antiautoritários, engajados num constante debate intelectual. Ideias, mesmo que muito ousadas, mereciam cuidadoso escrutínio. Eram burgueses. Gostavam da boa vida, e se dedicavam a aproveitar esta vida. Pois a Grande Depressão ameaçava seu mundo ao espalhar pobreza e desespero, incitando movimentos radicais como Comunismo e Fascismo. Aquele mundo vitoriano no qual haviam sido criados não existia mais, apagado pelos refugos da Primeira Guerra, soterrado por uma crise econômica como nunca antes vista, destroçado pelo surgimento de governos autoritários. Foi neste ambiente que Russel e Keynes, um sem saber do outro, começaram a brincar com a ideia de uma renda básica universal.

Em 1932, Russell publicou na revista americana Harper’s um artigo que já provocava no título: Um Elogio ao Ócio. Descolando-se da dura realidade econômica daquela década, mirando o futuro, ele questionava uma ética que valoriza excessivamente o trabalho. Não paramos de trabalhar. E assim, conforme avanços tecnológicos tornam fábricas mais e mais eficientes, ao invés de transformar esta eficiência em tempo livre a convertemos em desperdício enquanto diminuímos a necessidade de trabalhadores. A quantidade de produtos que são comprados e despejados após pouco uso aumenta. Poderíamos ter usado a tecnologia para construir uma sociedade em que trabalhamos menos horas por semana. Ao invés, produzimos mais do que precisamos e jogamos muito fora. Geramos um redemoinho que concentra renda. Ele não descrevia um problema moral e sim uma escolha econômica. Uma escolha que fazia uns trabalharem demais e gerava o desemprego de outros. E, quase cem anos depois, estamos batendo no limite daquilo que o filósofo descreveu.

Seu amigo John Maynard Keynes era um economista liberal que, perante o caos da Depressão, se pôs a repensar modelos econômicos. A um ponto, já prevendo que uma guerra estava por vir, se dedicou a estender pontes com a esquerda, com quem pensava economia no Partido Trabalhista, para fechar um acordo que permitisse ao Reino Unido juntar reservas para o conflito iminente. Keynes considerava que os trabalhistas encaravam a questão dos operários pelo ângulo errado. No limite, a luta de sindicatos por salários mais altos podia comprometer a capacidade das fábricas do país de serem competitivas internacionalmente. Como podia levar a demissões. O ponto de equilíbrio do valor do salário para eficiência econômica era sutil. O problema da dignidade de vida para os trabalhadores, ele considerava, poderia ser mais bem resolvido com políticas de Estado. Saúde e educação públicas de qualidade, subsídio para moradia, benefícios diversos. A um ponto, um ex-aluno ligado à esquerda lhe propôs a ideia de uma renda básica universal. Um valor pago a todo cidadão mensalmente. "Há muito tempo tenho algo do tipo em mente", ele comentou. "No momento certo, não vejo por que seria politicamente impossível. Certamente teria lugar em qualquer programa político utópico."

Este futuro utópico que Keynes imaginava passa pelo dilema de Russell. O economista acreditava que os ganhos de eficiência diminuiriam a necessidade de trabalho enquanto aumentariam a produção de riqueza. Não previu, claro, o esgotamento do planeta. Tampouco levou em consideração a ética que põe o valor da vida na quantidade de trabalho que se produz.

Mas o problema com o qual lidavam nos anos 1920 ganhou outra escala um século depois. O principal motivo é que os avanços de automação produzidos pela revolução digital tornaram trabalho desnecessário com uma velocidade e numa escala nunca vistos. O problema tende a se agravar pois vai além da uberização. Se Uber paga mal, com a entrada dos carros autônomos sequer o trabalho mal pago existirá. E o problema não é o Uber ou o transporte. O mesmo processo está se dando em todas as indústrias. Ganhos de eficiência levam a maior produção de riqueza e menor necessidade de trabalho humano.

A pandemia levou inúmeros países a experimentar com renda básica, ainda que por um período curto. No Brasil, de acordo com um estudo coordenado pelo professor Marcelo Neri, o auxílio emergencial de emergência tirou mais de 13 milhões de brasileiros da pobreza. O impacto imediato foi maior do que o produzido pela estabilização monetária imediatamente após o Plano Cruzado, em 1986, e a do Real, em 1994.

O problema é que o auxílio, no valor de R$ 600, não é sustentável na atual arquitetura econômica.


Se Keynes representa a ‘esquerda’ do pensamento econômico liberal, também à ‘direita’ há defesa. Milton Friedman, que tornou-se o principal crítico do keynesianismo na segunda metade do século 20, defendia um Estado o menor possível e considerava que o aparato burocrático para distribuir benefícios sociais era, em grande parte, um desperdício. A alternativa que ele propunha era de uma renda mínima atrelada ao imposto de renda de pessoa física. Famílias que recebessem menos de um determinado valor, ao invés de pagarem imposto, receberiam de volta um quinhão. Friedman acreditava que dinheiro na mão das pessoas, para que fizessem o que desejassem, era mais eficiente do que o Estado tomando a decisão a respeito de que serviços oferecer.

Duas visões distintas — em uma, de Keynes, a renda básica complementaria benefícios do Estado. Na outra, de Friedman, os substituiria.

Desde 1982, o governo do Alaska paga anualmente um valor a todos seus cidadãos. Não é alto, mas é suficiente para algumas avaliações. Um estudo da Universidade de Chicago concluiu que não houve qualquer efeito sobre o nível de emprego da população quando comparado ao resto dos EUA. Ou seja: o fato de que todos ganham um dinheiro do governo não fez com que as pessoas parassem de trabalhar. Mas houve um aumento ligeiro no número dos que trabalham parte do tempo. É discreto, 1,8%, mas é real. Como é um dos poucos locais do mundo onde dá para estudar na prática o efeito de um pagamento continuado e a longo prazo, o resultado é importante. Renda mínima não faz as pessoas trabalharem menos.

Em verdade, o que os estudos demonstram é que Betrand Russell, assim como o grupo de Bloomsbury em geral, tinha uma pista importante em seu elogio ao ócio, e não porque as pessoas parariam de trabalhar. Mas porque o prazer na vida faz diferença econômica. Uma pesquisa do Gallup, feita mundialmente, revelou que apenas 13% das pessoas empregadas se dedicam com prazer ao trabalho. O mesmo estudo afirma que, nos EUA, 70% dos trabalhadores ou são indiferentes ou simplesmente não gostam do que fazem para ganhar dinheiro em troca de sustento. E esta má relação com o que se faz custa dinheiro: lá, US$ 500 bilhões ao ano por perda de produtividade.

O que renda básica universal traz para o tabuleiro não é propriamente ócio, mas escolha. É prazer e, dele, uma economia melhor. Além de alguma dignidade mais. Pessoas podem escolher não pegar empregos dos quais não gostam. Têm, igualmente, mais poder para negociar menos horas ou mais dinheiro. Deixam vagas abertas para quem antes estava desempregado. Quando quem não quer trabalhar deixa o mercado, quem quer mas precisa de algo que inspire tem mais espaço de escolha, e as opções de trabalho por meio período se ampliam, a produtividade total da economia aumenta. Renda básica universal faz isso.

Pelas contas do Fórum Econômico Mundial, pagar mil dólares por mês a todo americano não custaria o valor multiplicado pelo número de cidadãos. Sairia por 30% disso, ou aproximadamente US$ 900 bilhões ao ano. O motivo é simples: as pessoas não deixam de pagar impostos. A maioria receberia o valor mas pagaria de volta um bom naco, muitos até mais. Só em abatimento de impostos concedidos no governo Donald Trump a soma chega a US$ 1,5 trilhão, e foram concentrados com os mais ricos.


Ou seja: a ideia de uma renda básica universal é apoiada pela esquerda — seu principal proponente, no Brasil, há anos é o vereador paulista Eduardo Suplicy. É apoiada por liberais keynesianos. E por liberais friedmanianos. É defendida arduamente pelo Fórum Econômico Mundial. Se era discutida com ares de utopia há um século, hoje no seu entorno cresce convicção. Ela é viável. Mas é também uma mudança de política econômica radical. Exige redesenhar programas sociais e o regime tributário. Exige da esquerda que repense o que espera de direitos trabalhistas. Exige, da direita, que questione dogmas como o de que cobrar menos impostos dos mais ricos geram crescimento econômico. Porque será preciso sobretaxar de um lado, e repensara relação trabalhador-empregador do outro.

O Vale do Silício defende — até porque sabe que a tecnologia que sua indústria cria vai exigir algo do tipo. Deve ir a plenário no Congresso da Califórnia agora, em 2021, um projeto de lei que pretende pagar a todo cidadão com mais de 18 anos mil dólares por mês desde que ele ganhe até duas vezes a renda média de seu condado.

Sim. Duas vezes."

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